Nascimento da música

Imaginem que deixavam esta realidade, e passavam a existir numa outra, onde a tecnologia e o progresso (para o melhor ou pior) existiam mas onde a música tal como o conhecemos não mais é que meramente uma utopia, algo onírico, qual delírio na mente de um louco... Imaginem agora, que nesse mesmo mundo, ouviam falar desse algo maravilhoso que era música, tal como uma mensagem messiânica que se propaga num mundo ansioso por uma fé... A princípio é olhada com espanto por uns, com desconfiança por outros, mas que acaba por todos seduzir progressivamente, qual doce néctar apenas permitido aos deuses... e assim, o que antes eram meras notas dispersas e solitárias, ou então efémeros sons desconexados, se reconstrói e dá lugar a uma nova e genial criação: a música... Por fim, imaginem qual seria a impressão que vos deixaria quando entrassem contacto pela primeira vez com ela, como se os vossos ouvidos se tivessem tornado folhas virgens nas quais novas ideias ganhavam forma sobre a forma de palavras, frases, parágrafos, a um ritmo febril, qual momento de inspiração divina na mente de um escritor...
Sem mais demoras:
"Um som ou alguma coisa verdadeira a existir. A nascer, a crescer, a viver. Uma coisa verdadeira e infinitamente bela a agitar-se no ar do salão. Um lamento. Uma angústia a transformar-se de repente numa alegria grande. A caminhar, a correr, a dançar. Um sonho bom a transformar-se numa alegria branda. Glória e espanto. Um som a existir muito. O ar do salão cheio de um milagre invisível. Um segredo profundo a atravessar-nos. Uma emoção a continuar para onde se imagina. A vida condensada e repetida. Um momento ao qual não tínhamos a certeza de poder sobreviver. Recordações e a explicação simples da vida. O mistério mais impossível e a revelação mais clara. Cores: branco, azul, verde, branco, luz, negro, azul, ceú, branco. Nenhuma cor. Água. Silêncio a falar a língua da claridade numa voz de manhãs. Um som ou alguma coisa verdadeira. Tudo isto e nada disto era a música." - José Luís Peixoto ("Uma Casa Na Escuridão" p.66)